Santa Maria com destino a Porto Alegre. 18h. Sento-me
confortavelmente na poltrona 12, corredor. Há tempos já não
faço mais questão de sentar na janela, desde que não é mais permitido abri-las. Na hora da saída, a vantagem é sempre de quem está no corredor: o vivente é possuído por uma sensação de poder sobre o que está na janela: "pegaste a janela, ms eu posso travar tua saída", coisas de pessoas vingativas, não é o caso. Quando um ingênuo pum resolve passear pelo ônibus,
já não há mais vantagem na janela, aliás, é decepcionante não
poder abri-la nesse momento de angústia. Mas o que é um peido
depois da invenção do diálogo?
- Em
quanto tempo chega em Porto Alegre?
- Umas
4 horas, 4h e meia.
- Mas
eu pedi pra eles calcularem o tempo. Não vai dar tempo. Eu pedi pra
eles calcularem.
- O
senhor vai pra onde?
- Vendinha (ou algo parecido),
perto de Lajeado.
- Por
que o senhor não pegou um Santa Cruz para Lajeado?
- Eles
disseram que não tinha mais passagem. Eles querem é vender
passagem. Esse ônibus tem que sair logo pra eu chegar, tomara que
chegue voando. Já está atrasado pra sair. Tomara que saia logo pra
dar tempo.
- (com
esperança) O senhor ainda pode descer, já que o ônibus ainda não
saiu.
- Não
adianta, eu vou ter que ir de qualquer jeito. Vou pra Porto Alegre
depois volto metade do caminho pra pegar meu caminhão. Ele só vai
tá carregado as sete da manhã.
- (silêncio)
- Tomara
que saia logo, já passou cinco minutos. Tomara que esse ônibus
voe!
- Eles
sempre dão esse tempo.
- Já
tá atrasado, dá pra reclamar, mas não adianta. Tomara que esse
ônibus vá voando.
- (silêncio
emburrado).
- Não
adianta reclamar, Ai, tá saindo, já tá atrasado. (pausa
esperançosa para minha alegria) Mas não vai sair? Acho que agora
vai. Tomara que voe!
Neste
momento, abro o notebook para tentar trabalhar no meu texto, como se fosse
possível. Por um momento de enorme ilusão, pensei que ao abrir o
note, o desconfiômetro do ser ao lado seria automaticamente ligado.
Falta de intuição maior nunca tive na vida.
- Tomara
que esse carro voe pra chegar logo e dar tempo.
- (expressão de descontentamento acompanhada de suspiro irritado)
- Eles
só querem é vender passagem, não adianta, só querem vender
passagem. Vou ter que pagar um hotel em Porto Alegre, uns 50, 60 reais, fazer o que. Tomara que esse
ônibus voe!
- (silêncio)
Ele
finalmente para de falar. Eu, não tão tranquilamente e com dificuldade, faço
retoques no texto em que estou trabalhando quando, de repente, me dou
conta que em nenhum outro momento da vida o que eu escrevo fora tão
interessante. Os olhos vidrados na tela do meu notebook. Invasão
pouca é bobagem. Paro de escrever. Fecho a janela do meu texto e vou
ler outro. Os olhos acompanham, não perdem nada. Tiro o outro texto,
abro o facebook. O olhar vidrado na minha tela. Nenhum
constrangimento. Nada, nadinha. Não cursou o módulo básico de
comportamento no ônibus. Desisto. Fecho o notebook e finjo sono
repentino. Viro a bunda gorda para o lado do vivente,
com apenas um propósito: VINGANÇA! Mas por dez mil repolhos,
flatos, onde estão vocês quando eu mais preciso? Nada. Nem sinal. A falta de sono me faz lembrar do início da conversa: "em quanto tempo chega em Porto Alegre? - 4h, 4h e meia"... 4h, 4h e meia...
TOMARA
QUE ESSE ÔNIBUS VOE! TOMARA QUE ESSE ÔNIBUS VOE!
Beju da
Gorda